sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

2CELLOS - The Show Must Go On [OFFICIAL VIDEO]

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

HERÁLDICA, A CIÊNCIA E A LINGUAGEM DOS SÍMBOLOS ATRAVÉS DA HISTÓRIA NOS BRASÕES

 O Brasão de Armas de Santos

O Brasão de Santos foi adotado pela Lei 638, de 20 de setembro de 1920, quando era Prefeito o Tenente-Coronel Joaquim Montenegro. O desenho foi feito por Benedito Calixto, que seguiu - ou pelo menos tentou seguir -, as especificações estabelecidas pela própria Lei, e inspirando-se também no brasão estampado no estandarte feito em 1888, a mando da Casa da Câmara.
Na época, apenas algumas cidades do país possuíam brasões, a maioria deles criados por leigos na arte da Heráldica. Aqui não foi diferente, pois Calixto, apesar de excelente pintor e historiador, não passava de um curioso no assunto.
Assim, nosso símbolo apresentava muitas falhas nos elementos que o compunham, algumas delas bem graves, como a coroa mural de 4 torres que identificava Santos como uma aldeia, e não como cidade.
Durante os anos que se seguiram a 1920, os erros e falhas nas Armas Santistas foram apontados por diversos historiadores, estudos foram feitos e profissionais foram consultados. Em 1948, o Brasão foi restabelecido pela Lei 925, de 22 de janeiro de 1948, no mandato do Prefeito Rubens Ferreira Martins, mas as falhas permaneceram.
Em 1957 foi instituída a Bandeira do Município, no mandato de Sílvio Fernandes Lopes, que utilizava o inadequado Brasão (Lei 1986 de 3 de outubro de 1957). Em 1980 chegou a ser apresentado um projeto de Lei (74/80) objetivando a correção do Brasão, e que foi submetido ao exame profissional do heraldista Lauro Ribeiro Escobar.
Finalmente, em 2003, o Brasão foi remodelado e sua modificação ratificada pela Lei 2134 de 12 de setembro de 2003. O projeto foi elaborado por uma Comissão Especial de Vereadores, criada para este fim, que baseou-de no trabalho de pesquisa dos historiadores Wilma Therezinha de Andrade, Jaime Mesquita Caldas e Antonio Ernesto Papa. Embora não tenham sido corrigidas todas as falhas, algumas das mais gritantes foram sanadas.
Cidade de Santos
O Brasão de Armas de Santos que vem sendo utilizado desde 2004, quando falhas graves foram corrigidas.

Brasão: os elementos e seu significado

Escudo Português Vermelho
Cidade de Santos
O escudo ibérico, com a parte superior retangular e a inferior boleada, ficou conhecido também como "escudo português" ou "escudo espanhol", por ter sido largamente utilizado quando das guerras que determinaram a expulsão dos mouros da Península Ibérica. Este é o formato de escudo adotado pelos mais tradicionais municípios de São Paulo, já que é o que mais convém a descendentes de portugueses. O escudo indica que esta é uma terra colonizada e formada por portugueses. A cor vermelha - o "campo de goles" - denota a audácia, a nobreza e a valentia. Além disso, simboliza também o sangue derramado pelos primeiros habitantes da terra ao defendê-la dos ataques de piratas e índios hostis.
Coroa Mural
Cidade de Santos
De acordo com as regras da Heráldica, nos brasões de domínio, a condição de cidade é representada pela coroa mural de 8 torres, sendo toda em ouro para as capitais de Estado e em prata para as demais cidades. A coroa mural de prata com 6 torres (4 à vista), representa uma vila, e a coroa de prata com 4 torres (3 à vista), representa uma aldeia.
A Coroa sobre o escudo, com ameias em forma de castelo, simboliza a força, a resistência e a emancipação. Como praça militar que foi desde os tempos coloniais, Santos tem direito de utilizar o símbolo de 8 torres.
Seguindo rigidamente as regras da Heráldica, as torres devem ter portas obrigatoriamente, e as janelas são opcionais. A portas devem ser desenhadas em sable (preto). No entanto, elas vêm sendo comumente representadas abertas, para simbolizar a hospitalidade do povo do lugar. É o caso do brasão de Santos, onde as portas também aparecem abertas, na cor vermelha, para simbolizar a hospitalidade do povo santista.
Esfera Armilar
Cidade de Santos
A esfera com anéis ou armilas é utilizada como representação do Universo, onde a Terra ocupa a posição central, na visão ptolomaica do cosmos, e as armilas principais representam os meridianos celestes (na vertical), o equador, os trópicos e os círculos polares (na horizontal) e a banda do zodíaco (em diagonal). A rigor, a banda do zodíaco deveria ser tangente aos dois círculos tropicais, estando pois inclinada 23,5 graus em relação ao equador. No entanto, por ignorância ou por razões estéticas, essa banda aparece habitualmente traçada com uma inclinação muito maior. É também comum se omitirem os círculos polares.
Esta esfera era utilizada pelos antigos navegantes em seus cálculos astronômicos e, mais tarde, foi adotada pela Escola de Sagres para simbolizar a ciência de "marear", tornando-se depois um símbolo manuelino de poder marítimo, político e econômico associado às navegações, numa relembrança da expansão lusitana. No Brasil, simbolizando a ciência e a navegação, a esfera passou a figurar no próprio brasão de armas nacional, tendo sido largamente utilizada em moedas, uniformes militares e medalhas.
Caduceu
Cidade de Santos
O caduceu é um bastão entrelaçado com duas serpentes, com duas pequenas asas ou um elmo alado na parte superior. Sua origem se explica racional e historicamente pela suposta intervenção de Mercúrio diante de duas serpentes que lutavam, as quais se enroscavam em seu bastão. Os romanos utilizavam o caduceu como símbolo do equilíbrio moral e da boa conduta: o bastão expressa o poder, as duas serpentes representam a sabedoria, as asas simbolizam a diligência e o elmo é emblemático de pensamentos elevados.
O símbolo é antiquíssimo e pode ser visto na taça sacrifical do rei Gudea de Lagash (2.600 aC), mas há indícios de que seja ainda mais antigo.
A organização de seus elementos, por exata simetria bilateral, como a balança de Libra ou, na trindade da heráldica, o escudo entre dois suportes, expressa sempre a mesma idéia de equilíbrio ativo, de forças adversárias que se contrapõem para dar lugar a uma forma estática e superior. No caduceu, este caráter binário e equilibrado é duplo: há serpentes e asas, que ratificam o estado supremo de força e autodomínio no plano inferior (serpentes, instintos) e no superior (asas, espírito).
A antigüidade, inclusive a civilização greco-romana, atribuiu poder mágico ao caduceu. Há lendas que se referem à transformação em ouro de tudo o que era tocado pelo caduceu de Mercúrio e a seu poder de atrair as almas dos mortos. Mesmo as trevas podiam ser convertidas em luz por virtude desse símbolo da força suprema cedida a seu mensageiro pelo pai dos deuses.
Banda Auriverde
Cidade de Santos
Santos ganhou o direito de utilizar a banda auriverde da Independência em memória de seu mais ilustre filho: José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência. No entanto, este elemento não é exatamente uma banda, já que a sua colocação no brasão contraria o padrão heráldico de banda, que deve ser representada tal como no desenho acima: mais larga, com uma inclinação específica e alcançando as bordas do escudo.
O Ouro e a Prata
O ouro e a prata são os metais que figuram entre os esmaltes (cores) utilizados na arte da Heráldica. Eles podem ser representados como metais, com os reflexos próprios, ou pelas cores amarela e branca, respectivamente. No brasão de Santos, esses metais simbolizam a primeira bandeira ou entrada no sertão, empreendida por Brás Cubas e outros santistas nos idos de 1562.
Suportes
Cidade de Santos
Os aqui chamados suportes, - os ramos de cafeeiro nas laterais do escudo -, na verdade são classificados como "tenentes" pela arte da Heráldica, já que o "suporte" se aplica apenas às figuras de animais. Mas ambos são adornos heráldicos e tem a mesma função, aparecendo geralmente em duas figuras, uma de cada lado do escudo. No caso do nosso brasão, os dois ramos de cafeeiro frutificados utilizados como "tenentes" simbolizam o ciclo do café e a principal riqueza agrícola do Estado de São Paulo, que tornou o Porto de Santos seu principal escoadouro. O ciclo do "ouro verde" constituiu a base para o comércio e deu um grande impulso ao desenvolvimento de Santos.
Listel
Cidade de Santos
O listel, - a figura de adorno situada abaixo do escudo, recebe elementos conhecidos na arte da Herádica como mottos, divisas ou legendas, geralmente escritos em latim, francês ou inglês. Em nosso brasão, o listel traz a frase em latim: "patriam charitatem et libertatem docui", que quer dizer "à pátria ensinei a caridade e a liberdade". A divisa faz referência direta à fundação da primeira Santa Casa de Misericórdia do país e à tradição do povo santista na luta e defesa da liberdade - primeiro pela Independência e, em seguida, pela abolição da escravatura.
Os erros do antigo Brasão
Em 1981, a Câmara Municipal de Santos solicitou ao então Secretário da Cultura do Estado, Antonio Henrique Cunha Bueno, um parecer sobre o projeto de Lei que tramitava na Câmara Santista, apresentado em 1980 pelo Vereador Kosei Iha e que objetivava a correção do Brasão. O parecer foi fornecido pelo heraldista Lauro Ribeiro Escobar, que apontou erros crassos no brasão de armas santista, atribuindo-os quase que inteiramente à uma interpretação errônea da Lei 638 de 1920, que o instituía. Da mesma forma, ele criticou os "excessos descritivos" da nova Lei que estava então sendo proposta.
A Heráldica, apesar de ser uma arte complexa, remonta ao século XII e há historiadores que acreditam ser sua origem ainda mais remota, dada a antiguidade dos símbolos pessoais e familiares que ela utiliza. Certos símbolos são únicos, e apresentam apenas uma forma de representação. Desta forma, um "caduceu" não carece de descrição, bem como a esfera armilar - só existe uma maneira de desenhá-los. As cores, designadas genericamente "esmaltes", obedecem a certas regras e convenções para sua representação. Tradicionalmente elas se dividem em metais (ouro e prata), cores e peles (arminhos e vieiros). As cores são oito, com nomes bastante particulares: sable (negro), goles (vermelho), azul, sinople (verde), púrpura, laranja, castanho e carnação (cor de pele).
A descrição de nosso brasão, segundo a Lei que o criou, era: "um escudo português em campo de goles, uma esfera armilar com uma banda auriverde, posta em diagonal entre as linhas tropicais. Das extremidades do eixo da esfera sai um caduceu de ouro, que é rematado em pinha em torno da qual se estendem duas asas em vôo. Na haste do caduceu enroscam-se duas serpentes do mesmo metal. Sobre a parte superior do escudo, que é orlado de prata, pousa a coroa mural de ouro, composta de quatro torres com três ameias e duas portas cada uma. O escudo é cingido por dois ramos de café de sua cor, e sobre eles a fita de prata. Por baixo do escudo, se inscreve em letra de goles a divisa "patriam charitatem et libertatem docui".
Cidade de Santos
O inadequado Brasão de Santos, que vigorou por 84 anos.
O heraldista Lauro Ribeiro Escobar apontou diversos erros na interpretação da Lei por Benedito Calixto, bem como reservou algumas críticas para os elementos de linguagem anti-heráldica da própria Lei, que podem ter contribuído para a criação de um brasão completamente inadequado para Santos.
Uma das falhas crassas do Brasão era o escudo. O escudo português tem a parte superior reta e a inferior boleada (redonda). O escudo com a ponta em chaveta (em bico na parte inferior) que utilizávamos foi concebido pelo heraldista francês Hierosme de Bara, no século XVI. Dessa forma, ao invés de evocar a nossa formação e descendência portuguesa, o brasão indicava erroneamente uma colonização francesa. Esta falha foi devidamente corrigida em 2004, quando se vê as duas imagens colocadas lado a lado (veja mais abaixo).
Outro erro apontado pelo heraldista foi a reprodução incorreta da esfera armilar, com excesso de meridianos, e da orla de prata do escudo. Segundo o estudioso, a orla é semelhante à bordadura, mas não alcança as extremidades do escudo. Portanto, o que o nosso Brasão ostentava era um "debrum de prata", ou seja, uma bordadura reduzida (mais fina).
A coroa mural formada de quatro torres (três à vista) dava a Santos a condição de aldeia, e não de cidade. Além disso, o ouro na coroa é reservado para as capitais, o que tornava a nossa coroa mural duplamente errada. A partir de 2004, a coroa mural passou a ser de prata, com oito torres (cinco à vista), como deve ser para uma cidade da importância de Santos.
Cidade de Santos
O Brasão como era antes de 2004
Cidade de Santos
Brasão atual, com diversas correções.
Quanto à "banda auriverde", ela não corresponde à peça conhecida como banda pela Heráldica, que seria mais larga e tocaria as bordas do escudo. O que Lauro Escobar viu e descreve é "um bastão posto em banda, cortado de sinople (verde) e ouro".
Ora, o bastão em banda designa a bastardia e deve ser evitado em brasões municipais, pois seria o mesmo que dizer que esta é uma terra de bastardos (!). Apesar de no Brasão atual esta peça ter sido um pouco alargada, não o foi bastante e tampouco alcança as bordas do escudo para ser chamada "banda". Portanto, de acordo com o heraldista, esta é uma falha de interpretação que não foi completamente corrigida.
Outra falha apontada pelo heraldista é que o listel (a fita com a divisa) deveria acompanhar a cor predominante do escudo, no caso o goles (vermelho), como de fato foi adotado no Brasão oficial de hoje.

Referindo-se aos tenentes nas laterais do escudo, Lauro Escobar fez uma crítica ao esquecimento da cana de açúcar, sugerindo que um ramo de cana poderia muito bem figurar de um dos lados do escudo, já que foi a primeira e uma importante riqueza da nossa região.

EDUCAÇÃO NO III MILÊNIO: QUANDO ALUNOS DÃO AULA A MESTRES

Ana Júlia e a palavra encarnada

O movimento de ocupação da escola pública tornou-se a principal resistência ao projeto não eleito e pode ser a pedra no caminho do PSDB em 2018

A estudante Ana Julia, 16 anos, ao discursar na Assembleia Legislativa do Paraná.  REPRODUÇÃO
Ana Júlia Ribeiro resgatou a palavra num país em que as palavras deixaram de dizer. E que força tem a palavra quando é palavra. O vídeo que viralizou levando o discurso de Ana Júlia para o mundo mostra que a palavra dela circula pelo corpo. É difícil estar ali, é penoso arriscar a voz. Ela treme, ela quase chora, Ana Júlia se parte para manter a palavra inteira. A câmera às vezes sai dela e mostra a reação dos deputados do Paraná. Alguns deles visivelmente não sabem que face botar na cara. Tentam algumas opções, como numa roleta de máscaras, mas parece que as feições giram em falso. Deparam-se aflitos com a súbita dificuldade de encontrar um rosto. A palavra de Ana Júlia arruinou, por pelo menos um momento, a narrativa que começava a se impor: a da criminalização dos estudantes e de seu movimento de ocupação da escola pública. Mas a disputa ainda é esta. E tudo indica que se tornará cada vez mais pesada: são os estudantes que estão no caminho do projeto de poder do governo de Michel Temer e das forças que o apoiam. E são também eles que podem atrapalhar o tráfego de quem corre para 2018, em especial o PSDB de Geraldo Alckmin.
A maior parte da imprensa ignorou o movimento de estudantes que, no final da semana passada, ocupavam cerca de 800 escolas públicas do Paraná e outras centenas pelo país, incluindo universidades, em protesto contra o projeto de reforma do ensino médio do governo Michel Temer (PMDB). Projeto apresentado como Medida Provisória, o que é só mais um sinal do DNA autoritário dos atuais ocupantes do poder. Os estudantes também ocuparam as escolas em protesto contra a PEC- 241, que congela gastos públicos por 20 anos e pode reduzir o investimento em educação e saúde, áreas estratégicas para o país, com impacto direto sobre os mais pobres.
A potência da voz de Ana Júlia é a da palavra que tem corpo
A ocupação das escolas públicas era – e é – o movimento mais importante deste momento no país – e o espaço na imprensa, quando havia, era mínimo. Até o dia em que um estudante matou outro a facadas, dentro de uma das escolas. Aí as matérias apareceram. Havia então o que dizer. Transformar um fato isolado, com suas circunstâncias particulares, em estigma de todo um movimento levado adiante por milhares de jovens é uma especialidade conhecida do não jornalismo e da política sem ética. E então veio o discurso de Ana Júlia. Não pós-verdade, mas verdade. A verdade dela, do coletivo de estudantes que ela ali representava. A potência da voz de Ana Júlia é a da palavra que tem corpo.
As reações ao discurso de Ana Júlia expressam a época histórica que encontra sua melhor crítica numa série de ficção: Black Mirror (Netflix), com suas distopias sobre a vida atravessada pelas novas tecnologias. Há pelo menos duas maneiras de esvaziar a palavra de Ana Júlia esvaziando Ana Júlia. Uma delas é ridicularizá-la. O tremor da voz, do corpo, as lágrimas viram “argumentos” para fragilizar seu discurso. É o velho truque usado contra as mulheres, usualmente reduzidas a “histéricas” ou “loucas” ou “mimimi”. O todo que constrói a voz é atacado para deixar sua palavra, o verdadeiro alvo, sem lastro. Sem corpo. Desde que seu discurso viralizou, seus 16 anos de vida estão sendo vasculhados na tentativa de encontrar qualquer episódio que possa ser torcido, para destruir sua palavra destruindo-a. Se não existir, pouco importa, fabrica-se – como se viu em vídeos e sites pela internet.
Mas há também uma outra forma de esvaziar a palavra de Ana Júlia, e esta parece inofensiva, “do bem”. É transformar Ana Júlia em “heroína” ou na “esperança de um país”. Nessa narrativa, Ana Júlia é isolada do grupo que sustenta seu discurso, seu corpo. Ela, que representava muitos, que era multidão, passa a ser conjugada no singular. Sozinha, Ana Júlia pode muito pouco.
O outro efeito dessa “celebrização” é a exigência do que Ana Júlia não pode ser – e não pode ser nem quando pode muito. Num país mastigado por uma crise que também é de palavra, não há como transferir para uma jovem de 16 anos a responsabilidade por “salvar” o Brasil, transformando-a em encarnação da “esperança”, esta que também é tão superestimada. Neste lugar simbólico, qualquer um, mesmo que tivesse 80 anos de idade, estaria condenado ao fracasso. Inflar sua palavra é também uma forma de despontencializá-la.
A única proteção contra esquartejamentos na arena pública é o coletivo
Ao esclarecer que seu discurso foi preparado em conjunto com o grupo de estudantes, pedir para não tirar fotos sozinha e evitar falar de sua vida pessoal, Ana Júlia parece conhecer os riscos de ser convertida em celebridade instantânea. Se esta conversão fosse completada, sua palavra viraria produto. E Ana Julia seria consumida e cuspida, como já aconteceu com tantos. Nos dias que se seguiram ao discurso na Assembleia Legislativa do Paraná, em Curitiba, foi possível testemunhar muitas mãos, vindas de várias direções, tentando arrancar lascas da palavra-corpo de Ana Júlia. A única proteção contra esquartejamentos na arena pública é o coletivo, o grupo, o juntos – o movimento.
Em um momento do seu discurso de 10 minutos e 40 segundos, Ana Júlia menciona a morte do estudante Lucas Eduardo de Araújo Mota e afirma: “Vocês estão aqui representando o Estado, e eu convido vocês a olhar a mão de vocês. A mão de vocês está suja com o sangue de Lucas. Não só do Lucas como de todos os adolescentes que são vítimas disso. O sangue do Lucas está na mão de vocês, vocês representam o Estado”.
O presidente da Assembleia, Ademar Traiano (PSDB), como um daqueles tubarões rápidos em detectar um flanco de oportunidade, acreditou que havia ali uma chance de atacar a menina e devolver o plenário ao seu ambiente natural, aquele em que peixinhos dourados não confrontam velhos carnívoros. “Aqui você não pode agredir o parlamentar.... Eu vou encerrar a sessão, eu vou cortar a palavra... (...) Não afronte deputado, aqui ninguém está com a mão manchada de sangue, não”, inflamou-se. Encerrar a sessão, “cortar a palavra”, seria mesmo uma bênção para uma parcela dos parlamentares.
Ana Júlia seguiu defendendo as palavras: “Eu peço desculpa, mas o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) nos diz que a responsabilidade pelos nossos adolescentes, pelos nossos estudantes é da sociedade, da família e do Estado”. Nem precisaria pedir desculpas. Ela estava falando em português para pessoas que deveriam ter capacidade de interpretação de discursos em língua portuguesa. O deputado entendeu muito bem que ela não se referia a mãos literalmente “sujas de sangue” ou apontava uma relação direta com a morte do estudante, mas estava, sim, chamando atenção sobre a responsabilidade constitucional dos parlamentares em sua função pública. O deputado apenas preferiu apostar na burrice – e parece que ninguém perde no Brasil atual ao apostar na burrice.
Com o projeto conservador avançando, os partidos progressistas derrotados nas urnas, as esquerdas brigando entre si, sobrou para os estudantes uma responsabilidade grande demais
Há um ponto, neste episódio, que é justamente a responsabilidade dos adultos. Com a escola pública, com o Brasil. A ação dos estudantes tornou-se o principal movimento de resistência ao projeto não eleito do governo Michel Temer e das forças que o apoiam. Com a oposição fragilizada, o PT quebrado, capitais importantes como São Paulo e Rio nas mãos de conservadores e as esquerdas sem projeto e brigando entre si, sobrou para os estudantes secundaristas um peso grande demais. Neste sentido, foi um pouco assustador testemunhar adultos infantilizados tratando Ana Júlia como um oráculo de 16 anos. É preciso fazer melhor do que isso tanto para apoiar os estudantes, respeitando sua autonomia, quanto para construir um projeto capaz de ecoar no país.
A escola pública foi destruída e abandonada por décadas. Também o PT fez menos do que poderia, em especial nos ensinos fundamental e médio, durante os 13 anos que permaneceu no poder. Enquanto a classe média pôde matricular seus filhos nos colégios privados, ninguém se preocupou com os filhos dos mais pobres, que não tinham educação e viviam um cotidiano de violações. A violência começa pelo salário humilhante dos professores, o abandono dos prédios e uma escola que não educa, incapaz de qualificar o desejo e ampliar os mundos de crianças e adolescentes. Tudo indica que aqueles que ali estão não têm valor para o país, relegados ao lugar simbólico de restos.
Enquanto foi este o estado das coisas, bem poucos parecem ter se preocupado para além do discurso vazio, das palavras sem corpo sobre a importância da educação, que ressurgiam a cada eleição e que culminaram com “Brasil, Pátria Educadora”, o slogan do governo deposto de Dilma Rousseff. Dizer que “educação é prioridade” se tornou um falso consenso que, em vez de palavra, virou flatulência.
As escolas públicas só se tornaram um problema para as forças conservadoras quando os estudantes as ocuparam para exigir educação de qualidade
Ter escolas que não educam para os mais pobres nunca foi de fato um problema para as elites do país. Estava tudo bem assim. O problema surgiu quando os estudantes das escolas públicas de São Paulo entenderam que a “reorganização escolar” imposta pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que fecharia mais de 90 colégios e remanejaria mais de 300.000 alunos, era um abuso. Ocuparam então as escolas no final de 2015. E, mais do que ocuparam, cuidaram do que ninguém cuidava – limpando, pintando e consertando – e disseram que queriam, sim, ser educados. Cuidar das escolas e reivindicar ensino de qualidade virou uma transgressão a ser punida. E a ser criminalizada.
A ideia de que as escolas podem ser ocupadas, num sentido profundo, por aqueles que dela dependem para ter oportunidades na vida, se alastrou pelo país. “De quem é a escola? A quem a escola pertence?” foi uma das primeiras perguntas de Ana Júlia aos deputados do Paraná. É uma grande pergunta, e os estudantes têm uma resposta a propor.
Movimentos de “Ocupa Escola” começam, acabam e recomeçam em diversos estados do Brasil desde o ano passado. A ocupação das escolas do Paraná coincidiu, porém, com um momento ainda mais delicado do país: um projeto não eleito no governo federal, apoiado por um Congresso corrompido, tocando com grande rapidez reformas cruciais, como a PEC-241, sem debate com a sociedade.
Quem está, de fato, no caminho deste projeto de poder, tanto quanto das ambições de algumas figuras nacionais, neste momento de oposição fragilizada ou mesmo atarantada? Os estudantes secundaristas com seu “Ocupa Escola”, uma luta que ganhou uma dimensão muito maior do que eles poderiam prever. Assim, há várias forças tentando destruir o movimento, seguindo a cartilha de sempre: criminalizando-o.
É importante perceber que, de repente, a escola, com a qual bem poucos se importavam para além do discurso vazio, virou o alvo de ataques conservadores bem organizados. “Escola Sem Partido”, o projeto-aberração que busca criminalizar o pensamento crítico dentro das escolas e, portanto, acabar com a possibilidade de qualquer processo educativo, é uma das ofensivas em curso. “Escola Sem Partido é falar pros jovens, pra sociedade, que querem formar um exército de não pensantes, um exército que ouve e baixa a cabeça”, disse Ana Júlia aos deputados do Paraná.
O “sem partido”, vale prestar muita atenção, é a malandragem do momento. Ela busca encobrir todos os partidos que estes projetos tomam – e vender uma suposta neutralidade ideológica que não têm. Sem contar a crescente criminalização dos partidos políticos, tanto como conceito quanto como atores do processo democrático, algo que merece uma atenção exclusiva em outro artigo.
Entre as tentativas de deslegitimar o movimento dos estudantes, a mais corriqueira é anunciar que os alunos são “manipulados” e “aparelhados” justamente por partidos de esquerda. Fizeram o mesmo com Ana Júlia tão logo seu discurso viralizou na internet. É triste assistir a ela e a outros estudantes terem de explicar de novo e de novo para jornalistas e mesmo para parlamentares que o movimento é “apartidário” – o que é diferente de “sem partido”.
É impressionante que ainda funcione essa nova versão dos comunistas comendo criancinhas enquanto o Brasil se torna o país do mais um direito a menos por dia
Não fosse parte da população tão estúpida, perceberia que os partidos identificados com a esquerda foram derrotadas nas urnas nestas últimas eleições e que o projeto conservador vem atropelando o país de forma acelerada, transformando o cotidiano em mais um direito a menos por dia. Lula teria ligado para Ana Júlia para dizer que estava “emocionado” com o movimento? Era Lula que precisava disso, não Ana Júlia e o movimento que representa. Se tivesse preocupado com a causa dos secundaristas mais do que com a sua sobrevivência política, Lula teria inclusive se abstido deste telefonema.
Assim, é impressionante que ainda funcione essa nova versão dos comunistas que comem criancinhas enquanto os direitos da população estão sendo engolidos, digeridos e defecados em Brasília pelas forças que, mais uma fez, refazem o pacto conservador para manter os privilégios intactos. A tática de inventar um inimigo e alimentar com ele o medo da população é tão antiga quanto a humanidade. Que ainda funcione pode ser explicado por aqui pela péssima educação pública, que pode piorar ainda mais, como alertam os estudantes.
O MBL parece bem mais interessado em criminalizar os estudantes que ocupam as escolas do que em denunciar os corruptos que seguem dando as cartas em Brasília
O Movimento Brasil Livre (MBL), um dos protagonistas das manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff, tem atuado pela desocupação das escolas no Paraná e se esforçado para criminalizar o movimento dos estudantes. Aqueles que levantaram a bandeira da “corrupção” nas ruas do país, enquanto tiravam fotos junto com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), depois da deposição de Dilma parecem bem pouco interessados nos corruptos que seguem em Brasília dando as cartas. Mas, em contrapartida, estão muito empenhados em tirar os estudantes do caminho. Vale a pena observar com toda atenção que partidos o MBL apoia. Neste domingo, por exemplo, ajudou a eleger o novo prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), numa eleição que teve vidros estilhaçados e até uma morte, ambos os episódios ainda mal explicados. É a primeira vez que o PSDB comandará a capital gaúcha.
Com a Lava Jato rondando José Serra e Aécio Neves, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, vai chegando cada vez mais perto de ser o candidato do partido à presidência em 2018. Saiu das eleições de 2016, onde arriscou-se e ganhou, muito mais fortalecido. Se o PSDB foi o vencedor do pleito municipal, Alckmin – ao eleger João Doria prefeito de São Paulo ainda no primeiro turno, contrariando outros setores e caciques do partido, e ampliar a presença de sua base aliada nas prefeituras de outras cidades e regiões do estado – foi o campeão. Impressionante que ainda chamem de “picolé de chuchu” um dos políticos mais complexos – e assustadores – do Brasil atual.
Alckmin, o vencedor das eleições de 2016 que quer vencer em 2018, só perdeu batalhas significativas para os estudantes
Alckmin se reelegeu governador no primeiro turno, em 2014, em plena crise hídrica, negando a crise hídrica. Antes, em 2013, os protestos nas ruas aumentaram depois que a polícia de Alckmin arrebentou manifestantes e também jornalistas. Mas, em pouco tempo, com a ajuda de parte da imprensa, os manifestantes foram convertidos em “vândalos”. E, mais uma vez, Alckmin se safou.
Nos últimos anos, a única tentativa de Alckmin que não colou foi a criminalização dos estudantes que ocuparam as escolas públicas de São Paulo no final de 2015. Sua polícia começou a arrebentar crianças e adolescentes nas ruas e as imagens eram chocantes demais mesmo para os mais crédulos. Alckmin, o assustador, viu sua popularidade cair. O governador perdeu aquela batalha, e perdeu para adolescentes.
Os estudantes da escola pública estão no meio do caminho do projeto de poder de muita gente inescrupulosa. Com seus corpos franzinos. Com sua voz trêmula. Tão sós num momento em que os adultos que poderiam estar ao seu lado têm dificuldade para compreender a gravidade do momento e assumir responsabilidades.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Participe e conheça SANTOS do alto

PASSEIO TRILHA CAMINHOS DO MAR – 05/11/16

caminhos do mar
Há aproximadamente um ano, a Estrada Velha de Santos (SP) – trecho de nove quilômetros que liga o planalto ao litoral – foi reaberta à visitação. Situada no Parque Estadual da Serra do Mar, acessível pelas cidades de São Bernardo do Campo e Cubatão, a Estrada Caminhos do Mar foi, na década de 1920, a primeira rodovia pavimentada com concreto na América Latina (marcando o início da era do automóvel em São Paulo).
Fechada para veículos em 1985, tornou-se destino turístico para passeios a pé cerca de vinte anos depois (esteve em manutenção entre 2011 e fim de 2013 por conta de deslizamentos de terra). O percurso é marcado por monumentos históricos, fauna e flora local, belezas naturais e mirantes com vistas exuberantes da baixada santista e também da Usina Hidrelétrica de Henry Borden
Data: 05/11/16
cami1ca cam cami cami2 camin caminh caminho caminhos